AMN: Uma estrutura civil do MDN ou uma componente das FFAA

 

A efetiva caracterização da AMN não poderá passar apenas por uma abordagem ao elemento literário dos DL’s 43/2002, 44/2002, LOMAR e LOMDN. Necessário será atender igualmente à historicidade, sistematização e ratio legis subjacente à criação daquela estrutura.

Mas por agora debrucemo-nos apenas na letra da lei e tentemos perceber em que medida se poderá caracterizar a AMN como uma estrutura civil do MDN.

I.

Numa primeira análise, atendendo ao disposto no DL nº 43/2002, a AMN define-se como uma estrutura superior de administração e coordenação dos órgãos e serviços que, integrados na Marinha, possuem competências ou desenvolvem ações enquadradas no âmbito do SAM.

Atenta a definição da AMN e admitindo a sua natureza civil, em que medida poderá a entidade civil alheia à Marinha coordenar órgãos e serviços da Marinha no exercício de competências da Marinha, ainda que essas competências extravasem a tradicional missão militar?

Isto porque, se esses órgãos e serviços estão integrados na Marinha, e se possuem competências ou desenvolvem ações enquadradas no âmbito do SAM, essas competências e ações passam a ser, inexoravelmente, competências da Marinha.

Prosseguindo o raciocínio:

  1. Se as competências a coordenar pela AMN são próprias da Marinha;
  2. Se a Marinha, nos termos da LOBOFA é um ramo das FFAA;
  3. Se o CEMA, de acordo com a LOBOFA é a mais elevada autoridade da hierarquia do ramo;
  4. Se de acordo com o art.º 16 nº 3 da LOBOFA, na redação da LO nº 1-A/2009 (sem as alterações introduzidas pela LO nº 6/2014, para fazer ligação com o texto da LOMAR, por ter sido retirada a expressão “missões particulares”) os Chefes do Estado-Maior dos ramos são ainda responsáveis pelo cumprimento das respetivas missões particulares aprovadas, de missões reguladas por legislação própria e de outras missões de natureza operacional que lhes sejam atribuídas.
  5. Se o art.º 36º da LOMAR estatui que a Marinha compreende como órgãos que integram sistemas regulados por legislação própria e que asseguram o cumprimento de missões particulares: O Instituto Hidrográfico; os órgãos e serviços da AMN; os órgãos do serviço de busca e salvamento marítimo.

Então a entidade responsável pelo cumprimento das missões particulares do ramo, designadamente as missões dos órgãos e serviços da AMN, é o CEMA, na qualidade de chefia militar.

Isto leva-nos a perguntar se a AMN é uma competência do CEMA ou se se trata de um cargo de uma outra instituição? Uma espécie de duplo chapéu.

Para tal basta antever os efeitos da designação para o cargo de AMN uma outra entidade, que não o CEMA - a título de exemplo, o SGSSI. Creio que tal seria controverso e inaceitável para o ramo das FFAA porque estar-se-ia a afastar a linha hierárquica daqueles órgãos integrados na Marinha, relativamente ao Chefe militar do ramo no âmbito das missões particulares do respetivo ramo.

Por tal razão se percebe que o CEMA tem necessariamente de coincidir com a AMN. Não se trata de um duplo chapéu do CEMA, nem de uma questão de mérito, mas de uma qualidade – a de chefia do ramo naval das FFAA - da qual o legislador faz depender o poder de direção da estrutura do MDN a que designou AMN, para impedir a quebra da cadeia de comando da Marinha.

Mas tal significa que a AMN não pode ser considerada um ente civil. Pois, sê-lo significaria estar-se a subordinar a entidade civil à chefia da Marinha, o que na prática constitui uma subversão do princípio do Estado de Direito Democrático, por inversão da soberania popular, também designado por alguns autores como supremacia da sociedade ou supremacia civil.

II.

Numa outra perspetiva, atentemos agora ao elemento textual do DL nº 44/2002, que define a AMN como a entidade responsável pela coordenação das atividades, de âmbito nacional, a executar pela Marinha e pela DGAM, na área de jurisdição e no quadro do SAM, com observância das orientações definidas pelo Ministro da Defesa Nacional.

Este diploma que estabelece a estrutura, organização, funcionamento e competências da AMN estatui que o Chefe do Estado-Maior da Armada é, por inerência, a AMN.

Com a alteração introduzida pelo DL nº 235/2012 a AMN passa a definir-se como a entidade responsável pela coordenação das atividades, de âmbito nacional, a executar pela Armada, pela Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) e pelo Comando-Geral da Polícia Marítima (CGPM), nos espaços de jurisdição e no quadro de atribuições definidas no Sistema de Autoridade Marítima, com observância das orientações definidas pelo Ministro da Defesa Nacional.

Também este diploma esclarece que o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) é, por inerência, a AMN e nesta qualidade funcional depende do Ministro da Defesa Nacional.

A aclaração introduzida pelo DL nº 235/2012, conforme consta do respetivo preâmbulo veio dividir a Marinha em duas componentes: a componente militar, designada de Armada, e a componente de ação não militar, fora do propósito imediato e do âmbito próprio das Forças Armadas, que constitui uma outra estrutura do Ministério da Defesa Nacional, designada Autoridade Marítima Nacional, subordinando o CGPM à coordenação do CEMA na qualidade de AMN embora na dependência funcional do MDN.

Primeiramente importa referir que o texto do preâmbulo do diploma parece contraditório, na medida em que se refere à AMN como uma componente não militar do ramo naval das FFAA, que constitui uma outra estrutura do MDN - se o ramo das FFAA é uma estrutura do MDN, a AMN só poderá ser uma outra estrutura do MDN se não for uma componente do ramo, o que não faz qualquer sentido.

Mas se se articular a definição da AMN atribuída pelo DL nº 44/2002, com o art.º 16º da LOBOFA, poder-se-á concluir que o chefe do ramo só pode ser responsável pelo cumprimento das missões particulares do ramo referentes à AMN, se a AMN for uma estrutura da Marinha.

O CEMA é o responsável pelas missões da AMN, logo, o CEMA é o diretor da AMN.

Termos em que a definição e caracterização da AMN só poderá significar que a AMN é uma componente da Marinha, pois só assim se compreende que a condição militar da chefia do ramo não se altere por se encontrar no exercício de uma componente de ação não militar do ramo, mesmo que dependendo “funcionalmente” (mas não hierarquicamente) do MDN.

Por outro lado, sempre se dirá que uma componente de um ramo das FFAA será sempre uma componente das FFAA, ainda que a sua missão recaia “fora do propósito imediato e do âmbito próprio das Forças Armadas”. Isto é, mesmo que o propósito ultrapasse o cariz beligerante que define a instituição militar, como são exemplos o Museu de Marinha, os estabelecimentos de ensino militar, os Hospitais militares, etc.

Em segundo lugar, se a Armada é a componente de ação militar da estrutura da Marinha, poderia a AMN enquanto entidade estranha à Marinha coordenar a componente beligerante do ramo, histórica e concetualmente designada de Armada?

Não seria isto desconsiderar a liderança do ramo pelo CEMA?

E se atentarmos ao regime de cooperação institucional entre as FFAA e as FFSS (art.º 26º da LOBOFA e 35º da LSI), o SGSSI e o CEMGFA têm de se articular para não beliscar a cadeia de comando das FFAA.

Transpondo agora o modelo de colaboração para a relação institucional entre a Marinha e a AMN, só mantendo a chefia militar da Marinha como diretor da componente de ação não militar da Marinha, por concentração de competências, se pode dar alguma racionalidade à operância do modelo.

Nesta perspetiva a AMN tem de ser uma componente do ramo, pois só assim se mantém a unidade de comando.

Importa ainda apreciar a inovação que o DL 235/2012 veio introduzir, numa clara afirmação da instituição militar no Sistema de Autoridade Marítima.

Com a prolação do DL nº 235/2012 a AMN passa a definir-se como a entidade responsável pela coordenação das atividades, de âmbito nacional, a executar pela Armada, pela Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) e pelo Comando-Geral da Polícia Marítima (CGPM), nos espaços de jurisdição e no quadro de atribuições definidas no Sistema de Autoridade Marítima.

Perguntemos então que atividades desenvolve a Armada (componente de ação beligerante) no quadro das atribuições do SAM?

O DL nº 43/2002 estabelece um elenco de atribuições do SAM e um conjunto de entidades que exercem poderes de autoridade marítima. De notar que nenhum das atribuições do SAM se enquadra na Defesa Nacional, nem os ramos das FFAA constam no elenco de entidades com poderes de Autoridade Marítima.

Daqui poderemos extrair a intencionalidade do legislador no DL nº 235/2012 na afirmação do ramo naval das FFAA, numa alegada dúplice de componentes, para o exercício de poderes de autoridade no SAM, sob a coordenação da chefia do ramo funcionalmente dependente do MDN.

III.

Vejamos agora no que concerne à natureza da DGAM:

Reza o DL nº 233/2009 que a DGAM é o serviço da Marinha responsável pela direção, coordenação e controlo das atividades exercidas no âmbito da Autoridade Marítima Nacional.

E o DL nº 44/2002 estatui que a DGAM compreende: Serviços centrais; Departamento Marítimo dos Açores; Departamento Marítimo da Madeira; Departamento Marítimo do Norte; Departamento Marítimo do Centro; Departamento Marítimo do Sul; Capitanias dos portos; Instituto de Socorros a Náufragos; Direção de Faróis; Direção do Combate à Poluição do Mar; Escola de Autoridade Marítima, serviços esses que são dirigidos por oficiais militares. Claro está que tratando-se de serviços da Marinha não seria de admitir o contrário.

Mas:

  1. Se a AMN é uma estrutura de coordenação de órgãos e serviços da Marinha (DL nº 43/2002, nº2 do art.º 1º);
  2. Se a Marinha é um ramo das FFAA (LOBOFA);
  3. Se o CEMA é a mais alta hierarquia da Marinha
  4. Se o CEMA é o “diretor” da AMN;
  5. Se a AMN é responsável pela coordenação das atividades, de âmbito nacional, a executar pela Marinha;
  6. Se a DGAM é um serviço da Marinha;
  7. Se a DGAM, enquanto serviço da Marinha compreende os Departamentos Marítimos e as capitanias dos Portos;
  8. Se o AMN, o DGAM, os Chefes de Departamentos e Capitães de Portos são todos oficiais da Marinha.

Poderemos classificar a AMN como entidade civil só porque a Lei não refere que é militar?

Serão a PJM, ou os estabelecimentos de ensino militares, com base no mesmo argumento, entidades civis?

IV.

Vejamos outro silogismo:

De acordo com a LOBOFA, os Chefes do Estado-Maior dos ramos são responsáveis pelo cumprimento das respetivas missões particulares aprovadas, de missões reguladas por legislação própria.

Já o art.º 6º da LOMAR refere que a Marinha é comandada pelo Chefe do Estado-Maior da Armada e para o cumprimento da respetiva missão compreende: (…) o comando de componente naval, designado por Comando Naval.

O art.º 17º nº 1, al. b) da LOMAR prescreve que o Comando Naval (CN) tem por missão apoiar o exercício do comando por parte do Chefe do Estado-Maior da Armada, tendo em vista o cumprimento das missões particulares aprovadas, de missões reguladas por legislação própria e de outras missões de natureza operacional que sejam atribuídas à Marinha.

E o art.º 17º nº 2, al. b) da LOMAR estatui que no exercício do comando, de nível operacional compete ao CN garantir a fiscalização, no seu âmbito, dos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, tendo em vista o exercício da autoridade do Estado, sem prejuízo da competência dos órgãos e serviços da AMN (art.º 17º, nº 2, al. d)).

O CN é comandado por um vice-almirante designado por comandante Naval, na direta dependência do CEMA.

  1. Se o CEMA é responsável pelo cumprimento das respetivas missões particulares do ramo;
  2. Se a Marinha compreende como órgãos que integram sistemas regulados por legislação própria e que asseguram o cumprimento de missões particulares, os órgãos e serviços da AMN;
  3. Se a Marinha compreende o comando de componente naval, designado por Comando Naval;
  4. Se o Comando Naval tem por missão apoiar o exercício do comando por parte do CEMA, tendo em vista o cumprimento das missões particulares aprovadas, de missões reguladas por legislação própria;
  5. Se compete ao Comando Naval, no exercício do comando operacional garantir a fiscalização, no seu âmbito, dos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, tendo em vista o exercício da autoridade do Estado;
  6. Se o Comandante Naval se encontra na direta dependência do CEMA;
  7. Se a AMN é a entidade responsável pela coordenação das atividades, de âmbito nacional, a executar pela Armada, pela DGAM e pelo CGPM;

Então o CEMA é responsável pelo cumprimento das missões dos órgãos e serviços da AMN, coadjuvado pelo Comandante Naval, que é um comandante de um comando de operações militares na direta dependência do CEMA, que exerce o comando operacional da fiscalização nos espaços marítimos sob a soberania ou jurisdição nacional, sob a coordenação da AMN.

Afinal de quem depende o Comandante Naval: do CEMA ou do AMN?

V.

Um último silogismo:

Reza o art.º 36º da LOMAR que a Marinha compreende os seguintes órgãos que integram sistemas regulados por legislação própria e que asseguram o cumprimento de missões particulares: O Instituto Hidrográfico; os órgãos e serviços da AMN; os órgãos do serviço de busca e salvamento marítimo.

O Instituto Hidrográfico (IH), prossegue o art.º 37º nº 2, é dirigido pelo diretor-geral que é um vice -almirante, na direta dependência do CEMA.

O serviço de busca e salvamento, art.º 39º, é dirigido pelo CEMA.

Quanto aos órgãos e serviços da AMN, estatui o art.º 38º que a AMN tem como órgão central a DGAM cujo diretor-geral é um vice-almirante na direta dependência da AMN.

  1. Se a Marinha compreende como órgãos que asseguram o cumprimento de missões particulares, o IH, o SBSM e os órgãos e serviços da AMN;
  2. Se o Diretor-geral do IH se encontra na dependência direta do CEMA;
  3. Se o SBSM é dirigido pelo CEMA;
  4. Se os órgãos e serviços da AMN são dirigidos por um diretor-geral na dependência do AMN, cargo que é exercido por inerência, pelo CEMA;

Não será a distinção entre o CEMA e a AMN, no que concerne à relação de dependência do DGAM, algo mais que uma manipulação semântica, um criação de estética jurídica com vista a legitimar a dependência dos órgãos e serviço da AMN da chefia do ramo pela especial sensibilidade constitucional que a questão suscita desde 1982.

Será que a construção jurídica da AMN transforma o CEMA numa entidade civil?

VI.

Em conclusão:

Embora compreendendo o argumento da inexistência expressa na lei de qualquer referência à natureza militar da AMN, entendo que a omissão à referência militar não se basta para que a instituição AMN se afirme como civil.

Sendo a AMN uma “componente de ação não militar” do ramo naval da Forças Armadas - e repare-se na tónica dada pelo legislador do DL nº 235/2012: componente de ação não militar, quando poderia ter dito componente não militar, pois a ação poderá não ser militar, o que não significará necessariamente que haja ocorrido uma desmilitarização – enquanto componente da instituição militar, será, ela própria militar.

Aliás como diz o conselheiro Bernardo Colaço, com este “jogo de malabarismo legalista para a hegemonização e prática de um militarismo que é insustentável perante a Constituição”, a condição civil poderá não passar de um “simples desejo” para os arguentes.

Creio que o óbice da questão não estará tanto na natureza militar da AMN mas na sua ligação às FFAA enquanto componente do ramo, situação que colide frontalmente com a separação constitucional entre a segurança e a defesa nacional.

Face às atribuições da AMN, seria fácil defender a natureza civil, não fossem as persistentes referências ao ramo naval das Forças Armadas em todos os diplomas que criam, regulamentam ou alteram a estrutura, organização e funcionamento da AMN.

Até o DL 235/2012, que alegadamente tinha por objeto clarificar a autonomia da AMN face à Marinha, veio no seu preâmbulo aclarar que  “importa continuar a reconhecer a necessidade de serem alinhadas as múltiplas legitimidades de intervenção” da Marinha;

“que a Marinha representa uma moldura institucional com legitimidades heterogéneas e capacidades multifuncionais, onde se identifica uma componente de ação militar que constitui o ramo naval das Forças Armadas (…) e uma componente de ação não militar (…) designada de Autoridade Marítima Nacional”.

Em conclusão, a natureza da AMN evidencia-se, não só no preâmbulo do DL nº 235/2012, mas também na operância da própria instituição AMN, na dependência do CEMA, constituída por meios, equipamentos, instalações e pessoal da Marinha, financiada pelo orçamento da Marinha, operada pela Marinha, em suma, totalmente dependente da Marinha.

Admitindo que o atual Governo deu passos importantes e fortes sinais da sua pretensão de autonomizar a AMN, também os deu em sentido inverso, tal como os seus antecessores.

E não se poderão bastar as recentes alterações introduzidas na LOBOFA e LOMDN para que se mude o estado de coisas.

O Governo tem ir mais longe promovendo uma alteração profunda na profusa legislação extravagante da AMN.

Creio mesmo que a situação só se conformará pela extinção da AMN e integração da DGAM na tutela direta do Mar, ou dos Transportes, enquanto verdadeira Direção-geral, e criação de uma Autoridade Nacional totalmente civil que possa coordenar todas as entidades que exercem poderes de autoridade, controlo, vigilância e polícia no SAM. Uma autoridade que possa dirimir conflitos e desbloquear as dificuldades de partilha de informação. Uma espécie de SGSSI do SAM.

Só assim se conseguirá definitivamente concretizar a pretensão do legislador de conformar o exercício da autoridade do Estado no Mar ao atual quadro consitucional, tal como desejado desde 1982.

Miguel Soares

1 de novembro de 2014

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