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Ajeitar critérios

por JORGE SILVA PAULO *13 novembro 2013

A democracia não é amiga da consistência de critérios. A permanente necessidade de negociar e buscar acordos entre uma grande diversidade de visões, para que o maior número possível de cidadãos, se possível a maioria, se reveja numa política pública, produz modelos e quadros normativos nos quais não abundam a coerência e interpretações consensuais. Em parte, porque nem sempre é adequada a capacidade de os governos resistirem às pressões de grupos de interesses, isto se os governantes tiverem ideias claras sobre o que e como visam alcançar. E porque os grupos de interesses tendem a adotar os critérios que servem os resultados que visam em cada momento, com inevitáveis contradições. Vejamos alguns exemplos em que se cruzam critérios:

- A profusão de órgãos de polícia criminal pelos ministérios inclui a Polícia Marítima (PM), tutelada pelo MDN e dirigida por militares da Armada (embora fora da sua estrutura), modelo que propicia confusões sobre as fronteiras entre defesa e segurança interna, como a administração da Marinha revela há anos a respeito da Autoridade Marítima Nacional.

- A atribuição exclusiva dos comandos superiores da GNR a oficiais do Exército, excluindo os oficiais de carreira da Guarda e quando a Marinha tem oficiais que são ou foram titulares de órgãos de polícia criminal. O argumento da garantia da função militar (não é um exclusivo do Exército) da GNR em tempo de guerra é a exceção; a regra é o tempo de paz e a segurança interna, na qual os oficiais do Exército não têm formação nem experiência. E isto quando os militares recusam ser comandados por polícias.

- A atribuição de competências à GNR no mar, quando já existe uma polícia especializada e competente em todos os espaços marítimos e no domínio público marítimo, a PM, enquanto a GNR não tem tradição no mar e as suas capacidades são limitadas e redundantes.

- A Marinha foi "Armada" durante séculos (só é "Marinha" desde 1993); muitos marinheiros apelam às tradições com frequência - mas agora muitos não querem o regresso ao mais adequado e tradicional termo "Armada".

Há sempre tensão entre hierarquia e pluralidade: nuns casos, o poder de direção inerente à hierarquia é preferível às limitações de poderes devidas à existência de vários órgãos; noutros casos, a repartição de poderes e até a competição entre eles pode ter vantagens sobre a hierarquia. E há uma tensão entre a eficiência económica e os modelos institucionais: há modelos que gastam mais recursos do que outros para obter resultados parecidos; e há modelos eficientes que desagradam aos respetivos servidores ou destinatários.

Optar por um modelo não se resume a uma análise pecuniária e depende dos pressupostos e dos fins de analistas e decisores. Por isso, a decisão será sempre polémica: ninguém pode reclamar que tem "a melhor solução" (não é relativismo: há soluções más; não valem todas o mesmo); só o poderá ser na ótica dos critérios e interesses de quem o afirma, raramente de acordo com o interesse geral.

Aqueles exemplos revelam compromissos entre vários critérios e interesses, e até equilíbrios de poder, que só quem esteve na sua génese sabe como foram alcançados, e quem perdeu e ganhou o quê. Ninguém sabe se alguém conseguiria ou conseguirá alcançar outros. Anunciar mudanças trará à luz os interesses envolvidos, incluindo a resistência dos que perdem com elas. Os resistentes mais sofisticados declaram sempre querer mudanças - mas "não as anunciadas": não querem perder o que têm. A par dos demais resistentes, para angariarem adeptos nos media e no povo, destacam os benefícios do que defendem (desprezando os custos, que outrem suporta) e anunciam tragédias se não o conseguirem (desprezando os benefícios, de que outrem usufrui).

Poucos defendem o interesse geral sobre interesses setoriais. Menos ainda se expõem: é melhor deixar que o ónus da impopularidade caia sobre os governos. Os pouquíssimos que restam podem fazer ouvir a sua voz; mas terão pouco eco, até porque não faltará quem acuse essas vozes de falta de apoios...

Esta dinâmica está profissionalizada. Está estudada e nem é difícil percebê-la. O problema é mudá-la, porque a larga maioria das pessoas tem algum interesse nalgum domínio e faz o mesmo que alguma vez criticou noutros. Faz ter pena de quem for "prior numa freguesia destas"; e também explica que muitos critiquem a falta de vocações, mas poucos se consagrem ao ministério.

* Capitão de mar e guerra (reserva)

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